Entrevista
publicada na edição nº 375, abril de 2007.
Que desenvolvimento precisamos para (sobre)viver?
De como eles se relacionam e de como nós nos relacionamos com eles, depende a nossa vida e o nosso futuro sobre a Terra.
Inácio Neutzling,
padre jesuíta, diretor do Instituto Humanitas, UNISINOS, São Leopoldo, RS.
Endereço eletrônico: inacio@unisinos.br
Mundo Jovem: Os índices de crescimento econômico são referência para sabermos as condições de vida da população?
Inácio: Os índices de crescimento econômico, numa visão mais economicista, calculam o crescimento econômico pelo Produto Interno Bruto, o PIB, que é o crescimento econômico do país em suas dimensões econômicas. Isto é internacionalmente reconhecido. É um índice importante, mas é um deles entre muitos outros.
A economia geralmente absolutiza esse índice, mede todo o esforço econômico de um país, seu crescimento, unicamente por este índice. Então este índice econômico pode ser alto, como é o caso da China, 10% ou 13% ao ano, como o Brasil teve no começo da década de 70, o que foi chamado de milagre econômico. Mas este índice é matemático. Ele calcula o crescimento daquilo que se produz num país materialmente. Não consegue captar o que é desenvolvimento social, humano ou não-desenvolvimento social e humano.
Por isso há uma crítica forte do movimento ecológico, dos movimentos sociais em nível mundial a esta visão economicista. Uma série de economistas, como Amartya Senn, um dos prêmios nóbeis, conseguiram introduzir a idéia do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Ele mede não só o crescimento econômico, do desenvolvimento de um país, mas também o desenvolvimento social, humano, as questões de habitabilidade, saneamento básico, emprego, educação, longevidade, qualidade de vida.
Fala-se muito da necessidade de aumentar o índice de crescimento no Brasil. Mas este crescimento, mesmo se chegássemos a 5 ou 7%, quem garante que traria empregabilidade dos jovens? Hoje é possível crescer economicamente sem incorporar as pessoas todas que precisam trabalhar.
Mundo Jovem: Na sua opinião, a vida humana foi reduzida à economia?
Inácio: Até mais do que reduzir toda a vida social ao econômico, é no econômico que tudo se reduz ao financeiro. Essa é a grande mudança que se dá com a chamada globalização. Em primeiro lugar ela globaliza as finanças. O dinheiro torna-se cada vez mais invisível, onipotente, imaterial. Onde está o dinheiro? Está em tudo e não está em nada. Ou seja, tu não vês ele, tu não tocas ele, não armazenas ele como em outras épocas. Nos anos 70, o rico quem era? O patrão, era homem gordo, com porrete na mão e dinheiro saindo dos bolsos. O operário era representado pelo metalúrgico, com capacete na cabeça, magrinho, com bolso virado. Isso há 20 anos. O que é o rico hoje? O rico hoje não é gordo, ele é magro, esbelto, sarado, não leva dinheiro no bolso; o dinheiro é um toque no computador. Você pode aplicar o seu dinheiro não tanto na produção, que é muito menos rentável, mas jogar este dinheiro na especulação financeira internacional, que é muito mais rentável.
A política está a serviço da economia, das finanças, e não o contrário. A economia é que deveria ser regulada pela política e não a política estar a serviço das finanças. Essa inversão é que é impressionante.
Mundo Jovem: E isto interfere em outras áreas?
Inácio: Esta inversão se manifesta numa área que acho importante no crescimento econômico, que é a questão ambiental. Discute-se se as leis ambientais são ou não um entrave para o crescimento econômico. Quem está no poder acha que tudo se resolve pelo crescimento econômico. Por isso o Brasil estaria sendo travado. Segundo eles, quem trava são as leis ambientais, os ecologistas, os quilombolas, a questão dos povos indígenas.
A discussão de fundo é como retomar o crescimento econômico sem agredir a natureza. O movimento ecológico faz emergir o debate de que crescer economicamente significa consumir mais. Consumir mais significa agredir a natureza, mais produção de lixo, mais gás carbônico. Como conciliar crescimento com respeito à natureza? É possível crescer sem subordinar, explorar a natureza? A questão do crescimento econômico traz consigo, então, a pergunta: o que nós queremos? Que sociedade desejamos construir? Que futuro queremos projetar? Qual o ideal que temos de consumo? O consumo dos Estados Unidos? É impossível que nós consumamos o que consomem os norte-americanos. Por que não é possível? Porque a Terra não agüenta.
Mundo Jovem: Quer dizer que é preciso impor também limites ao desenvolvimento?
Inácio: Ao invés de crescimento, seria interessante talvez falar em desenvolvimento sustentável. O crescimento que desenvolva a pessoa humana em todas as dimensões, respeitando a natureza em todas as suas dimensões. Ou então, eu pessoalmente gosto de falar em sociedade sustentável. O desenvolvimento é possível ser sustentável? Eu acho que não, acho difícil.
O desenvolvimento é um conceito que vem dos anos 60, 70, de que nós precisamos de um desenvolvimento econômico. No fundo, era sempre a questão do econômico que era a primazia, fazendo com que houvesse o desenvolvimento. Depois, com o movimento ecológico, se introduzi o conceito de desenvolvimento sustentável, que originou a Eco 92, no Rio de Janeiro. Agora, desenvolvimento sustentável ainda é tentar conciliar crescimento econômico com sustentabilidade. Isto é possível? Tendo em vista que o crescimento econômico implica em mais consumo, consumo, consumo. A Terra vai agüentar isso? Aqui vem o conceito de “sociedade sustentável”, que é exatamente pensar a sociedade em todas as suas dimensões e a sustentabilidade em todas as suas dimensões: sociais, econômicas, humanas e na natureza com sua integralidade. Acho que estamos longe disto.
A sociedade está aprisionada, seqüestrada pelo econômico; não consegue enxergar além do econômico. O econômico conseguiu colonizar todas as esferas da vida social, política, cultural da modernidade. Divulga-se a idéia de que, no Brasil, o que trava o crescimento econômico é a questão ambiental e a questão social. Tem uma série de economistas que estão defendendo a idéia de que se o Brasil quiser crescer economicamente, tem que reduzir os programas sociais, tem que ter um rigor fiscal, tem que reformar as leis trabalhistas, tem que haver uma reforma na previdência, tem que rediscutir a Constituição de 1988. A idéia aqui é uma velha teoria, dos anos 70, do regime militar: “vamos fazer crescer o bolo para depois distribuir”.
Mundo Jovem: Estão em jogo, então, várias visões de sociedade e de desenvolvimento?
Inácio: Sim. E o que faz do movimento ecológico um movimento inovador, profético, inédito, é que ele conseguiu captar o grito da Terra, que clama ao ser humano que pare com isto. Como se a Terra dissesse: “Se tu continuares com esse jeito de consumir, tu, ser humano, e eu, Terra, vamos acabar”. Com uma diferença: “Eu, Terra, já me recriei várias vezes, me regenerei em vários cataclismas. Tu, ser humano, és muito novinho pra essas coisas. Nunca foste extinguido da face da terra”. A questão de fundo é a própria sobrevivência da espécie humana sobre a Terra.
Outra teoria diz que pela Revolução Tecnológica, pela nanotecnologia etc. seremos capazes de gerar uma outra espécie humana, que não dependa mais tanto da natureza, que seja diferente da espécie humana atual, humanos com chips, que sejam uma espécie de Ciborgs... Quem sabe surgirá uma espécie pós-humana.
Ainda há a teoria da exclusão, uma vez que o nosso tipo de crescimento econômico tem uma dinâmica interna, capaz de se refazer sem ter a necessidade de englobar todas as pessoas. Pela Revolução Tecnológica há a possibilidade de crescer economicamente, produzir produtos cada vez mais sofisticados, com um volume minoritário de pessoas que consomem. O sistema econômico cada vez mais rompe sua ligação com a sociedade, com o conjunto da sociedade. É possível um crescimento econômico autônomo, dispensando que as pessoas participem deste crescimento.
Mundo Jovem: O que dizer para os jovens? Qual é a esperança?
Inácio: Talvez uma saída seja o testemunho. Mostrar visivelmente para as pessoas que é possível viver bem, feliz, sem consumir tanto. Mas deixar de consumir tanto sem ressentimentos. Mais do que falar, manifestar por ações diferentes que é possível viver diferente. E viver bem e feliz. O nosso modo de comer é inviável, irracional, impossível de ser suportado. Por que comemos tanta carne, por exemplo? O que mais gasta recursos naturais hoje é a produção de carne. Para produzir um bife se consome uma tonelada e meia de água. A natureza não agüenta isto, porque se gastam recursos naturais que não são ilimitados. A água, neste caso, é fundamental.
Temos que mudar esta mentalidade de que o ser humano é tão “senhor” da natureza, que tudo está subordinado a ele. Aqui entra a questão ética, cultural, de refazer as relações, uma reeducação pautada num maior respeito à natureza.
A escola pode ajudar a mostrar para as pessoas o testemunho de quem vive de maneira diferente, pessoas que são capazes de viver reconciliadamente com a natureza, com as outras pessoas, que possam viver felizes sem consumir tanto e possam testemunhar isso.
O desafio é como construir uma nova arte de viver, relacionada com a mudança. Não é primeiro mudar individualmente para depois mudar socialmente, pois as duas coisas estão mutuamente relacionadas. Você muda seu modo de viver na medida em que a sociedade muda e a sociedade muda na medida em que você muda.
Mais do que conselhos e conscientização, é uma questão de mudar hábitos, costumes e o esquema mental. É preciso pensar numa “sociedade alternativa”, outro modo de consumir, de encarar, de comportar-se, de relacionar-se com a natureza.
Buscar uma sociedade sustentável
Em primeiro lugar seria necessário repensar o consumo. Precisaria haver um movimento para o consumo ético. Quanto mais global o problema, mais radicalmente local é a saída.
A mudança vai acontecer quando a pessoa perceber que não está sozinha no mundo, mas faz parte de uma grande rede. A minha ação aqui terá repercussão cósmica, universal.
Por exemplo: todo mundo quer ter um carro. Mas se todo mundo tiver um carro, onde vamos terminar? As estradas não agüentam, a poluição seria insuportável, não haveria combustível suficiente... seria impossível. Mas o carro é o símbolo da autonomia, com ele vou pra onde quero, na hora que quero. Ele é o sinal que faz romper as fronteiras de controle social. Mas se nós investíssemos todo o dinheiro gasto com carros particulares em transporte público, poderíamos ter transporte rápido, eficiente, limpo, barato. Isto seria possível. Por que não se faz? A saída está na consciência. É as pessoas começarem no seu cotidiano a terem outros hábitos, outro esquema mental.
Mas não basta só consciência. Algumas pessoas dizem que a saída é esperarmos uma grande tragédia. A humanidade sabe que está indo para um abismo, tem consciência, sabe que continuar assim não tem futuro, porque a Terra dá sinais, existem cálculos de que, pelo consumo atual, não há mais como a Terra se regenerar. As pessoas minimamente informadas sabem que nosso modo de vida está sendo irracional. Mas não mudam no seu dia-a-dia: não fazemos a separação do lixo, usamos desnecessariamente produtos descartáveis, não economizamos energia... E quando se trata de bens públicos, o desperdício é maior ainda. Parece que quando a pessoa paga, não precisa ter a dimensão ecológica e social.
Talvez nós tenhamos que chegar a um grande abismo, diz o pensador Edgar Morin. A humanidade reage quando está caindo no abismo. Será necessário chegar a uma crise tão grande, tão forte para aí tomar decisões? A pergunta é se ainda vai dar tempo, se a Terra ainda vai ter condições de responder a isso.
APÓS A LEITURA DA ENTREVISTA, POSTE UM COMENTARIO, RESPONDENDO AS INDAGAÇÕES ABAIXO:
A)O que significa dizer que a vida humana foi reduzida à economia?
B)Qual é a consequência do fato descrito na questão anterior?
C) Por que o jesuíta considera o movimento ecológico inovador?
D)Vocẽ acha possível que um dia sejamos o que o jesuíta chama de "sociedade alternativa"? Comente.